mayo 08, 2006

Os líderes e o liderado.

Publicado en VEJA.

A nacionalização do gás boliviano mostra que Chávez é o líder da América Latina. E Lula? Ele nãoconseguiu entender sequer quaissão os interesses brasileiros no caso.

O Brasil levou um chute no traseiro dado por Hugo Chávez e seu fantoche boliviano, Evo Morales. Antes, foram ambos a Cuba pedir a bênção do patriarca Fidel Castro para o que planejavam fazer. Nenhum desses companheiros se deu à delicadeza de avisar o ocupante do Palácio do Planalto, que se julgava um líder regional com estofo até para ser líder mundial. Pobre Lula. Foi o último a saber que o presidente Morales iria se apossar de propriedades brasileiras na Bolívia e colocar em risco o abastecimento nacional de gás natural. A reação do presidente Lula foi ainda mais constrangedora: engoliu o desaforo e ainda se solidarizou com o agressor, a Bolívia.

Para ampliar o efeito pirotécnico, Evo Morales escolheu o Dia do Trabalho, 100º de sua posse na Presidência, e comandou pessoalmente as tropas que tomaram a refinaria da Petrobras em San Alberto, o maior campo de extração de gás natural da Bolívia. Lá, de capacete de petroleiro na cabeça, o presidente leu os nove pontos do "Decreto Supremo" que passou para o controle do Estado boliviano toda a indústria do gás e do petróleo. O documento não fala em indenizar as empresas estatizadas. As vinte companhias estrangeiras atingidas pelo decreto investiram, ao todo, 3,5 bilhões de dólares na Bolívia – mas o prejuízo maior é da Petrobras, que aplicou 1 bilhão de dólares na extração e refino e outros 2 bilhões de dólares na construção do gasoduto que leva o produto até São Paulo.

A intenção de nacionalizar as riquezas do subsolo era uma promessa de campanha de Morales e foi preparada nos bastidores com a ajuda de um pelotão de técnicos e advogados venezuelanos enviados por Chávez. Apesar de todos esses indícios prévios, o governo brasileiro foi pego de surpresa e se apressou em declarar que a Bolívia tem direito às riquezas de seu subsolo. Isso é inegável. A soberania permanente de um país sobre seus recursos naturais é reconhecida pela ONU desde 1962. O ponto é que Morales expropriou ativos que pertencem ao povo brasileiro e rasgou, como se não valessem nada, tratados negociados de Estado para Estado nos últimos trinta anos. A ocupação de modo hostil, com o uso de tropas e sem conversações prévias, contraria o estabelecido no direito internacional e também as regras mínimas de convivência entre dois países que tradicionalmente são bons vizinhos.

O próximo passo, já avisou o governo boliviano, é aumentar os preços do gás natural fornecido ao Brasil. A ameaça é tremenda e pode se transformar num beco sem saída se o governo brasileiro não negociar com firmeza. Com o aumento do preço do produto, o prejuízo ultrapassaria as perdas diretas da Petrobras e atingiria diretamente a indústria paulista, que nos últimos anos foi incentivada a investir no uso do gás natural como fonte energética. O produto extraído na Bolívia responde por metade do consumo brasileiro e a reconversão das fábricas ou a descoberta de fontes alternativas podem levar anos. Nem assim Lula reagiu. "O governo deveria ter saído imediatamente na defesa dos interesses nacionais", diz Rubens Barbosa, ex-embaixador brasileiro em Washington. "Depois de anunciar a determinação de defender os interesses nacionais, deveria questionar a quebra de contrato e avisar que pediria indenização pela expropriação. Também deveria ter deixado claro que não aceitaria modificação unilateral no preço do gás."

Lula não fez nada disso. Na quinta-feira passada, o presidente brasileiro foi discutir a crise numa reunião em Puerto Iguazú, na Argentina, à qual compareceram Evo Morales, o argentino Néstor Kirchner e o ubíquo Chávez. A presença da Argentina se entende, pois o país também compra gás da Bolívia, mas por que a Venezuela? A resposta possível: Chávez foi falar em nome de Morales, seu discípulo, e deixar claro quem dá as cartas na nova geografia do populismo latino-americano. Lula saiu da reunião desenxabido e, como de praxe, confundiu conceitos. No seu entender, manifestar solidariedade à Bolívia, mesmo quando ela se apossa de um patrimônio que é de todos os brasileiros, significa emitir um sinal positivo de solidariedade continental. A reafirmação da unidade sul-americana, explicou, tranqüiliza os investidores estrangeiros. Seria mais sensato esperar o efeito totalmente inverso.

O incidente expõe as fraturas regionais e deixa explícito o vigor do novo ciclo de populismo na América Latina, que tem Hugo Chávez e Evo Morales como expoentes. A influência de Chávez na decisão boliviana de nacionalizar o gás já está provocando instabilidade política e econômica. Começa com a saída da Venezuela do Pacto Andino, o que estremeceu as relações entre Caracas e Bogotá. Devido à intromissão de Chávez nas eleições peruanas, Lima retirou seu embaixador da Venezuela. Agora, Chávez arruinou as relações entre o Brasil e a Bolívia. O que ficará na memória dos investidores internacionais é o alerta para evitar uma região sem lei e sem ordem, onde os contratos são desrespeitados. Isso é fácil de fazer, pois não faltam, do outro lado do planeta, oportunidades de investimentos em países sérios e estáveis. A desimportância crescente da América Latina no panorama mundial torna as coisas ainda piores: ninguém no Primeiro Mundo liga mais para as estripulias cometidas por aqui.

A economia da Bolívia, o país mais pobre da América do Sul, caberia com folga dentro do orçamento da cidade de São Paulo. Sem capital nem tecnologia, não há jeito de o Estado boliviano realizar os grandes investimentos necessários para tirar e processar o gás natural. Evo Morales sentiu-se à vontade para tomar as refinarias confiando em duas coisas. A primeira é o fato de o Brasil ser freguês cativo do gás boliviano. A segunda é a ajuda de Hugo Chávez. A estatal de petróleo da Venezuela, a PDVSA, prepara-se, nas sombras, para assumir os campos de gás que venham a ser abandonados por empresas estrangeiras. Chávez também já acertou o fornecimento de todo o óleo diesel que a Bolívia necessitar em troca de soja boliviana. Trata-se de uma política consistente do venezuelano para ocupar espaço no continente e influenciar países. Desde que assumiu a Presidência, em 1999, Chávez já gastou 25 bilhões de dólares em subsídios e doações a países latino-americanos.

Com seu sistema de apadrinhamento comercial, ele está tentando criar uma versão latinizada do antigo Comecon, o sistema comercial entre os países do bloco soviético. Dadas a fragilidade das economias comunistas e a infinita superioridade material da União Soviética, os preços internos do Comecon não correspondiam aos custos de produção e eram decididos de acordo com critérios políticos. Alguns países, como Cuba e Mongólia, dependiam inteiramente desse sistema para sobreviver. Com o barril do petróleo a 70 dólares, Chávez tem cacife para substituir a União Soviética como provedor de Cuba. Estima-se que a Venezuela esteja injetando na ilha de Fidel Castro, a fundo perdido, o equivalente a 20% de todo o dinheiro que entra no país. A Venezuela também compra produtos cubanos que não têm mercado no exterior e, em troca, recebe médicos e outros serviços de Fidel Castro. O presidente venezuelano já comprou 1 bilhão de dólares em títulos do governo argentino e 250 milhões de dólares da dívida externa equatoriana. "A estratégia de Chávez é exercer influência sobre quatro pequenos países, Nicarágua, Bolívia, Equador e Peru, para disputar poder com México, Chile e Brasil", disse a VEJA Jorge Quiroga, presidente boliviano entre 2001 e 2002, e hoje líder da oposição a Morales.

Estabeleceu-se uma divisão na América Latina e ela nada tem a ver com o velho confronto entre esquerda e direita. O que existe é uma linha entre governos responsáveis e populistas. México, Chile e Brasil estão no primeiro grupo. Uma característica comum aos populistas – Chávez, Morales e, em menor medida, Néstor Kirchner – é revestir o discurso com retórica de esquerda. Na verdade, os contornos ideológicos do populismo são difusos e vão sendo moldados de acordo com as circunstâncias. A revolução bolivariana e o socialismo do século XXI de Chávez são uma demonstração disso. Nem Chávez sabe do que se trata. O que importa para esse tipo de líder é criar argumentos e mecanismos para se perpetuar no poder. Por isso, costuma-se dizer que uma das características do déspota latino-americano é o voluntarismo, doutrina que atribui à determinação do líder o poder de mudar a realidade a seu bel-prazer. A atitude de Morales na Bolívia obedece ao padrão. "A nacionalização é o grande símbolo do populismo latino-americano", disse a VEJA o historiador peruano Alvaro Vargas Llosa. "Infelizmente, as pessoas rapidamente esquecem que todas as estatizações fracassaram de modo catastrófico." Essa é a terceira vez que a Bolívia estatiza seus recursos fósseis e minerais. Nas duas anteriores, em 1937 e 1969, a intervenção não ajudou o país a amenizar a miséria de seu povo e, por isso, acabou sendo revertida.

O sociólogo alemão Franz Oppenheimer, morto em 1943, dizia que há duas formas de uma nação acumular riqueza: de maneira racional, através da produção, ou de maneira violenta, por meio da expropriação. Apenas a primeira forma pode ser duradoura. O presidente Evo Morales escolheu a segunda ao nacionalizar a exploração e comercialização do gás e do petróleo por decreto. No imaginário popular boliviano – do qual Morales compartilha e se aproveita politicamente –, a riqueza oculta do gás vai sanar a miséria e o atraso do país. Um estudo da ONU publicado no ano passado, com o título "A economia boliviana além do gás", diz que o maior erro da Bolívia é apostar em um padrão de desenvolvimento monoprodutor. "A tendência mundial é de diversificar os mercados, multiplicando os setores produtivos e passando de uma economia de base estreita para uma de base mais ampla", sentencia o estudo, de autoria do economista boliviano George Gray Molina. O mundo é pródigo em exemplos de como a simples existência de uma riqueza natural não basta para garantir bem-estar à população. A Venezuela, com as maiores reservas de petróleo fora do Oriente Médio, tem metade da população vivendo na pobreza. Angola, um dos maiores produtores de diamante de alta qualidade do mundo, tem um terço da renda per capita do Brasil.

Golda Meir, a primeira-ministra de Israel entre 1969 e 1974, contava, em tom de anedota, que Moisés guiou os judeus durante quarenta anos pelo deserto para levá-los justamente ao único pedaço de areia do Oriente Médio onde não havia petróleo. Completava, em tom mais severo, que não se tratou de maldição, mas de uma bênção. "Nossas vitórias não poderiam existir sem uma economia de base sólida, um padrão educacional de alto nível entre soldados e civis e a alta capacitação tecnológica dos trabalhadores em todos os setores", explicava. A estadista israelense tocou naquelas que são as duas principais riquezas de um povo: a educação e o conhecimento tecnológico. "Para ser rico, um país precisa investir em ciência e tecnologia. É dessa forma que se consegue elevar a capacidade das indústrias de produzir melhor e ser mais competitivo no mercado mundial", diz Roberto Romano, professor de ética e política na Universidade Estadual de Campinas. "Foi esse o modelo adotado por Inglaterra, França, Itália, Alemanha, Japão e Estados Unidos – países que têm a riqueza mais bem distribuída entre a população." Por que a América Latina não consegue imitar essa fórmula comprovada para o desenvolvimento? "Vivemos obcecados com a discussão sobre se o livre-mercado é bom ou não, em vez de nos preocuparmos em ser mais competitivos", disse a VEJA o argentino Andrés Oppenheimer, autor do livro Lorotas Chinesas .– O Engano de Washington, a Mentira Populista e a Esperança na América Latina", best-seller na Argentina e no México, publicado no ano passado.

A América Latina continua a ser exportadora de matéria-prima, enquanto no mundo de hoje o que conta é o valor do conhecimento embutido em um produto. Morales, na Bolívia, tem outra explicação para a pobreza: a culpa é do imperialismo. Surpreende bastante, mas ele está falando dos brasileiros. Entre os bolivianos comuns há uma forte aversão ao "imperialismo" do Brasil. É possível que isso seja simplesmente um reflexo do gigantismo brasileiro, que suscita temor entre vizinhos menores. "Quem dorme ao lado do elefante teme ser pisoteado", diz um diplomata brasileiro. De forma um tanto obtusa, a Petrobras acabou se convertendo, na cabeça dos bolivianos, no protótipo da empresa exploradora dos recursos que deveriam salvá-los da miséria. O ministro de Hidrocarbonetos, Andrés Soliz Rada, apelidado pelos bolivianos de Boca de Poço, chama atenção pelos dentes desproporcionalmente grandes e pelo modo furioso como se refere à Petrobras. Jornalista antes de ser ministro, sempre escreveu sobre os recursos naturais bolivianos e pregou a urgência em expulsar a empresa brasileira. Seria mais sensato e honesto se agradecesse a contribuição da Petrobras ao desenvolvimento boliviano. A empresa extrai 57% do gás produzido pela Bolívia, contribui com 24% da arrecadação de impostos e tem sua bandeira em um em cada quatro postos de gasolina no país.

A opção brasileira pelo gás natural foi estratégica. O plano era reduzir a dependência que o Brasil possui em relação ao petróleo e à energia produzida pelas usinas hidrelétricas. O gasoduto Bolívia–Brasil entrou em operação em 1999. Tem capacidade para transportar 30 milhões de metros cúbicos por dia, mas, até recentemente, operava com grande ociosidade. Contratualmente, o Brasil era obrigado a pagar aos bolivianos por um gás que não estava utilizando. Houve várias negociações, com diferentes governantes do país vizinho, para que o preço fosse reduzido, mas a Bolívia, escorando-se nos contratos firmados bilateralmente, permaneceu irredutível. Agora que finalmente o Brasil precisa do gasoduto em plena força, a Bolívia joga os contratos na lata do lixo – aqueles mesmos que defendia com tanta veemência e resolução.

O gás natural como opção energética ganhou força com o racionamento de energia, em 2001, que lançou incertezas sobre a disponibilidade de eletricidade. Com o gás, as empresas podem produzir a própria eletricidade, utilizando para isso geradores especiais. Outro fator que impulsionou a vendagem do gás natural foi a escalada no preço do petróleo. O gás liquefeito de petróleo (GLP), o popular gás de botijão, é um derivado do petróleo e chega a custar 80% mais do que o natural. Houve também um forte avanço na utilização automotiva. A frota nacional de carros convertidos para rodar com o gás natural veicular (GNV), um combustível bem mais em conta do que a gasolina, já passa de 1 milhão. Em 2000, o Brasil consumiu 16 milhões de metros cúbicos por dia. No ano passado, o total atingiu 40 milhões de metros cúbicos, sendo quase a metade originária da Bolívia. Hoje, o gás natural responde por 8% da matriz energética brasileira. Qualquer alteração nas relações atuais será imediatamente repassada ao consumidor. As indústrias seriam incapazes de absorver um aumento nos preços desse combustível. Se o pior ocorrer, mais uma vez quem pagará a conta será a população brasileira.